Às vezes eu me pego pensando sobre a História. Se ela é o que de fato aconteceu ou só o que resolveram nos contar. Imagine que a água que bebemos ilustra bem o que quero dizer. É só você se perguntar se a água do esgoto é a mesma que sai de uma garrafa de vidro chique. Ambas são água, eu suponho. Mas uma delas eu não beberia nem morrendo de sede.
A “História”, com H maiúsculo, é a da garrafa de vidro. É limpa, embalada, tem um rótulo bonito com cores agradáveis e nomes atraentes. Eles nos dão essa garrafa na escola. “Beba!”, dizem eles. “É a verdade. Refrescante e pura”. E a gente bebe, porque tem sede de entender alguma coisa.
Mas o que aconteceu de verdade... isso é a água do esgoto. É a soma de todas as vidas limpas, sujas, as mostradas e as não contadas. A história do homem que consertou a bota do general. A da mulher que deu à luz no meio de uma batalha perdida. A do sujeito que morreu de tédio numa fábrica para que um grande homem pudesse fazer um discurso sobre progresso. Essa história não tem rótulo. Só fede. E ninguém quer chegar perto.
E quem são os donos da fábrica de engarrafamento? Os donos dos jornais, das editoras, das televisões, dos grandes estúdios de cinema, dos streamings, das redes sociais. Gente com dinheiro pra decidir como a História vai ser contada, por quem e pra quem. Eles não inventaram a água, mas decidiram como ela seria filtrada, o gosto que teria e quanto custaria. O preço é a sua alma. O seu ponto de vista. Eles te dão os heróis e os vilões já mastigados. Mais fácil assim. Pra eles. Para o que pretendem.
Eles criam narrativas como quem fabrica salsichas. Ninguém quer saber o que vai dentro, contanto que o gosto seja bom. Te dão o filme de guerra onde um cara sozinho vence mil, mas não te mostram o garoto que se cagou de medo, escondido, ouvindo as balas pra cima e pra baixo. Te dão a novela onde a menina pobre casa com o milionário, mas não mostram as outras milhares que continuam pobres e morrem sonhando com o príncipe que nunca chega. E também não mostram as que nem querem príncipe, mas igualmente não saem de onde estão. Porque não têm escolha. Não têm oportunidade.
Quando duas fábricas dessas se enfrentam, chamam de “guerra de narrativas”. Uma disputa pra ver qual salsicha é melhor. A verdade não entra na receita. Ou, se entra, é misturada com a mentira. Porque verdade demais estraga o produto final. A desinformação não é um erro, é um tempero.
E por que a gente come? Por que a gente compra? Porque a vida real, a história não contada, é dura demais. É um prato cheio de pedras. Quem é que escolheria mastigar pedras quando pode ter uma salsicha quentinha? A mentira é um cobertor quente numa noite fria. A verdade é o chão gelado.
Olho agora para as minhas mãos. Estão paradas sobre o teclado. São mãos reais. A dor na lombar é real. O zumbido no meu ouvido é real. Essa é a minha história. A única que eu posso ter certeza que aconteceu. O resto é boato. Um show de luzes para nos distrair... enquanto nos roubam a carteira. Enquanto nos roubam a vida.
Até quando alguém tenta criar algo “original”, de onde vêm as peças? Vêm das histórias que já lhe contaram, das palavras que já lhe ensinaram. É como um prisioneiro tentando construir uma jangada improvisada com os restos da própria cama e os lençóis velhos. Talvez consiga flutuar por um tempo. Mas ainda vai estar no rio que eles construíram. E vai naufragar. Inevitavelmente. Eu mesmo estou naufragando neste ensaio...
Então, no fim das contas, a resposta é óbvia: o que chamam de “História” é um produto. O ponto de vista dos donos da loja. É o cardápio, não a comida. É a propaganda de um remédio milagroso que não cura nada, mas te dá esperança o suficiente para comprar outra caixa.
O que realmente aconteceu não está nos livros oficiais. Nem na televisão. Está no silêncio entre as palavras. Nos rostos cansados dentro do ônibus. No cemitério dos sem nome. Na poeira que se assenta sobre os móveis de um apartamento vazio quando alguém morre sozinho.
A gente vive uma história. E lê outra, completamente diferente. E o truque é esse: fazer você acreditar que a história que você lê é mais importante do que a vida que você vive.
Eles conseguiram. Na maior parte do tempo, eles conseguem. Quase tudo acaba sendo como eles querem: as narrativas, as modas, os comportamentos... até os desejos mais íntimos das pessoas acabam moldados por eles. Ditar o que se deve desejar virou parte do pacote de felicidade.
Agora, se me dão licença... essa conversa toda me deu sede. E eu sei exatamente que tipo de água eu vou beber.
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