Tanto ódio por aí ultimamente. Coisa de arrepiar. É curioso como as pessoas não percebem que estão apenas alimentando um monstro que depois vai devorá-las. O ódio funciona segundo uma lógica própria, que entenderíamos com um pouco de boa vontade, mas que normalmente nos escapa: ele se retroalimenta. Você responde com ódio a uma manifestação de ódio e, pronto, já está preso na engrenagem. O ódio do outro cresce, o seu também, e logo estão ambos mergulhados no mesmo caldo venenoso. Há, porém, uma saída, conhecida desde muito tempo, mas que nossa época “avançada” insiste em ignorar: deixar que o ódio morra de fome. Se depender de mim, o que chegar até aqui, morre aqui mesmo. E aí com você?
Uma curiosa propriedade nas emoções humanas é sua natureza dual: além de serem estados subjetivos internos, elas atuam como forças vivas que se propagam tal qual ondas, inspirando reações semelhantes nas pessoas ao redor. O ódio, em particular, possui essa característica em grau superlativo. Quando alguém expressa ódio, está comunicando um sentimento e, além disso, lança uma espécie de projétil psíquico que, ao atingir o outro, tende a despertar nele a mesma emoção. Este fenômeno é um dos aspectos fundamentais da comunicação humana.
O mecanismo é simples e pode ser observado em qualquer discussão acalorada. Uma pessoa lança uma ofensa, a outra responde com outra ainda pior, a primeira eleva o tom, a segunda responde com uma ameaça, e assim por diante, numa escalada que, se não for interrompida, pode chegar às vias de fato. O curioso é que, terminado o confronto, cada um dos participantes se sente justificado, convencido de que apenas reagiu à agressão do outro. Ninguém se vê como o agressor, mas como a vítima que apenas se defendeu. É o que podemos chamar de “paradoxo da vitimização recíproca” – cada um se sente vítima do outro, e ambos estão, de certa forma, corretos em sua percepção subjetiva.
Nas redes sociais, esse fenômeno aumenta. A ausência do contato físico, a possibilidade do anonimato e a velocidade das interações criam o ambiente perfeito para a propagação do ódio. Uma postagem raivosa pode gerar centenas de comentários ainda mais raivosos em questão de minutos, criando uma tempestade emocional coletiva. O mais impressionante é que muitas dessas pessoas, se encontradas pessoalmente, seriam incapazes de manifestar um décimo da agressividade que demonstram online.
Mas o que está na raiz desse fenômeno? Por que o ódio se propaga com tanta facilidade? A resposta está na própria natureza humana e em nossa constituição psicológica. O homem é um ser que se define por imitação. Aprendemos a falar imitando, aprendemos a nos comportar imitando, e também aprendemos a sentir imitando. Quando expostos a uma emoção intensa, tendemos a reproduzi-la, especialmente se ela vem de alguém que consideramos importante ou que representa uma ameaça. É um mecanismo primitivo de sobrevivência: em situações de perigo, é vantajoso para o grupo reagir de forma semelhante e coordenada.
Há, contudo, uma diferença fundamental entre o ódio primitivo, que servia como mecanismo de defesa coletiva, e o ódio moderno, que se tornou uma espécie de vício social. O primeiro era circunstancial e direcionado a ameaças reais; o segundo é crônico e frequentemente direcionado a abstrações, a grupos inteiros de pessoas que mal conhecemos, a ideias que não compreendemos completamente. É um ódio que não serve a nenhum propósito adaptativo, mas que persiste porque criamos estruturas sociais que o alimentam constantemente – a mídia sensacionalista, as bolhas ideológicas, os algoritmos que dão preferência ao engajamento emocional negativo.
O mais trágico nessa dinâmica é que o ódio, além de se propagar entre as pessoas, também se aprofunda dentro de cada indivíduo. Quanto mais expressamos ódio, mais ele se enraíza em nossa psique, tornando-se parte de nossa identidade. A pessoa que inicialmente reagiu com raiva a uma ofensa específica pode, com o tempo, transformar-se em alguém permanentemente raivoso, para quem o mundo inteiro se tornou objeto de ressentimento. O ódio, de emoção passageira, praticamente se transforma em um traço de caráter.
E aqui chegamos a um ponto crucial: o ódio, como qualquer emoção, precisa ser alimentado para sobreviver. Se não lhe dermos atenção, se não o expressarmos, se não o justificarmos com elaboradas racionalizações, ele tende a se dissipar naturalmente. É como um fogo que, sem lenha para queimar, se apaga. Mas nós, em nossa infinita tolice, alimentamos uma fera selvagem diariamente e depois nos surpreendemos quando ela nos ataca.
O combustível mais eficaz para o ódio é, sem dúvida, a retaliação. Quando respondemos ao ódio com mais ódio, estamos simultaneamente propagando-o para fora e reforçando-o dentro de nós. Cada ato de retaliação funciona como uma confirmação de que o ódio é justificado, de que ele merece existir. É como se disséssemos a ele: “Você está certo em existir, você é necessário, você é justo”. E assim, paradoxalmente, ao tentar combater o ódio do outro, acabamos fortalecendo o nosso próprio e, por consequência, alimentamos também o ódio alheio, criando um ciclo de intensificação mútua.
A sabedoria de várias culturas sempre reconheceu esse mecanismo do ódio e sua propagação. Não é por acaso que tantas tradições religiosas e filosóficas enfatizam o perdão, a não-retaliação, a capacidade de “oferecer a outra face” como práticas fundamentais. Essa é uma profunda compreensão da psicologia humana. Essas tradições já haviam percebido, muito antes da psicologia moderna, que responder ao ódio com mais ódio apenas alimenta e perpetua o ciclo destrutivo.
Mas seria ingênuo pensar que basta decidir não odiar para que o problema esteja resolvido. O ódio, uma vez instalado, não desaparece por um simples ato de vontade. Ele precisa ser reconhecido, compreendido e gradualmente transformado. É um trabalho interior que exige autoconhecimento e disciplina emocional. Não é o caso de reprimir o ódio, isso apenas o empurraria para o inconsciente, onde continuaria atuando de formas mais sutis e perigosas. É necessário observá-lo com distanciamento, sem se identificar com ele.
Esse trabalho interior, contudo, não é suficiente se não for acompanhado por uma mudança nas estruturas sociais que alimentam o ódio coletivo. Precisamos de espaços de diálogo genuíno, onde as diferenças possam ser expressas sem hostilidade. Precisamos de uma mídia que não lucre com a polarização e o sensacionalismo. Precisamos de líderes que unam em vez de dividir.
Enquanto essa transformação coletiva não ocorre – e ela com certeza não ocorrerá da noite para o dia – cada um de nós pode fazer sua parte interrompendo o ciclo do ódio em sua própria vida. Quando recebemos uma mensagem carregada de hostilidade, temos sempre a opção de não replicá-la, de deixar que o ódio morra ali mesmo, como um vírus que não encontra um novo hospedeiro para se reproduzir. Não é uma tarefa fácil, especialmente quando o ódio vem disfarçado de indignação justa ou de defesa de princípios nobres, mas é absolutamente necessária.
No fim das contas, a questão não é se conseguiremos eliminar completamente o ódio de nossas vidas – isso seria tão impossível quanto eliminar qualquer outra emoção humana fundamental. A questão é se aprenderemos a relacionar-nos com ele de forma mais consciente e madura, reconhecendo-o quando surge, compreendendo suas causas e escolhendo não alimentá-lo. Se cada um de nós fizer esse trabalho interior, o ódio continuará existindo como possibilidade humana, mas perderá muito de seu poder destrutivo sobre nossas vidas e sociedades.
Que cada um de nós faça sua parte nessa tarefa. Que cada um se torne um ponto final na cadeia de transmissão do ódio, um lugar onde ele chega mas não encontra resposta, onde ele morre de inanição por falta de alimento. Que não se veja nisso submissão ou covardia, mas uma escolha consciente baseada na compreensão de que o ódio, quando alimentado, cresce não apenas no outro, mas principalmente em nós mesmos. E que tipo de vitória é essa, em que derrotamos o inimigo ao custo de nos tornarmos aquilo que desprezamos nele?
O Gustavo Corção do nosso tempo🤩
Mais uma pedrada 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽